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terça-feira, 22 de maio de 2012


Terras de mulheres negras: A construção da identidade quilombola no Piauí contado através das histórias de vidas das mulheres quilombolas.
Rosymaura da Silva Duarte
Especializanda em Educação, cultura e identidade afrodescendente pelo Núcleo de Estudo
sobre africanidades da Universidade Federal do Piauí – Ifaradá. Graduada em Ciências Sociais pela
UFPI.

Resumo
A proposta deste artigo consiste em realizar algumas reflexões sobre a relações sociais das comunidades de quilombos e seus aspectos identitários de resistência de suas matrizes africanas sobre o foco da questão de gênero. A escolha da temática se deu devido a duas provocações: A primeira, que no Piauí não possui negros/as e nem índios/as, cuja, a tentativa é de esconder os/as negros/as, com a justificativa de o Piauí ter sido colonizado no ciclo do gado, após a Lei Áurea. A segunda foi encontrada dentro do movimento quilombola no Piauí que possui as lideranças femininas na sua coordenação e em especial as mulheres do quilombo Tapuio. A argumentação deste artigo é apresentar algumas reflexões sobre a organização da comunidade quilombola Tapuio e seus aspectos identitários de luta, delineados pela força das mulheres. Vislumbrando como se dá a construção da territorialidade no quilombo e da importância feminina nessa construção, pois são essas mulheres que ficam na luta pela sobrevivência numa terra semi-árida, ressignificando suas tradições.

Palavras chaves: Quilombo, mulheres negras, identidade, territorialidade

O que é quilombo? Segundo conceito dado ao rei de Portugal em 1740 pelo Conselho Ultramarino é “toda habitação de negros escravos fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem achem  pilões nele” (SCHMITT, TURATTI, CARVALHO, 2002, p.02). Contudo, conceito de quilombo contemporâneo de quilombo ressalta as noções de identidade e território (lugar), isto é, com a relação entre o modo de vida com o lugar em que vive, “Parentesco e território, juntos, constituem identidade, na medida em que os indivíduos estão estruturalmente localizados a partir de sua pertença a grupos familiares que se relaciona a lugares dentro de um território maior”. (SCHMITT, TURATTI, CARVALHO, 2002, p.04)


As comunidades quilombolas se ressignificam, através dos seus modos de vida, e variam de uma  comunidade para outra, sem ocorrer hegemonia, isto é, cada comunidade possui seu modo de serem, vivências, experiências e sabedorias, principalmente, através de ritos próprios de cada quilombo. E os ritos são de expressiva importância na composição do que chamo de táticas de resistência2 e, assim observar o cotidiano feminino, significa aprender os códigos e signos emitidos, sobretudo pelas mulheres quilombolas. 

As mulheres quilombolas têm muita importância na manutenção dos modos de viver e ser quilombola, por isso, quilombola não é uma construção e/ou invenção. Muito se falam em heróis negros, mas quase nada se tem sobre as heroínas negras, como por exemplo, Acotirene e Aqualtune, ambas de Palmares e a famosa rainha Teresa do quilombo Quariterê em Mato Grosso, a sua força de resistência das mulheres quilombolas, Esperança Garcia escrava negra no Piauí, que denunciou os maus tratos dos senhores de escravos. Mulheres guerreiras e que contribuíram muito para a resistência da cultura de África no Brasil. 

A história de vida das mulheres quilombolas, não é muito diferente das mulheres camponesas, a distinção é a etnia, através da territorialidade e da cultura herdada de seus antepassados. Um exemplo de importância histórica para as mulheres quilombolas é a história de vida da rainha Teresa que administrou o quilombo Quariterê- Mato Grosso cerca de “duas décadas, até 1770. Contava com um parlamento um conselheiro da rainha e um sistema de defesa com armas trocadas com brancos ou furtadas nas propriedades vizinhas”(SCHUMAHER, Schuma.2007.p.82). Mulheres com essas histórias de vida são geralmente esquecidas e/ou negadas, pois para uma sociedade patriarcal os heróis da resistência são os homens, como por exemplo, Zumbi dos palmares. Entretanto quando falam de Zumbi quase não ou nunca fala de Acotirene, sua rainha que era quem organizava o quilombo, principalmente no setor produtivo.

Se hoje podemos identificar as comunidades de quilombos, as mulheres possuem contribuição muito importante para a resistência da cultura afro-descendente. 

Rito ou ritual é um conjunto de atos formalizados, expressivos, portadores de uma dimensão simbólica. (SEGALEN, Martine.2002.p.31)
 Chamo táticas de resistências os meios que as comunidades quilombolas utilizam para resistirem ao
sistema de exclusão e marginalização, é o que Maria Aparecida Carneiro chama de estratégias de
sobrevivências.

A organização, principalmente da parte cultural ficavam por canta das mulheres mocambeiras ou quilombolas, segundo SCHUMAHER , “a participação das mulheres foi determinante e fundamental, tanto na manutenção prática, com o abastecimento de provisões, confecção de roupas e utensílios, quanto na preservação de valores culturais e religiosos”(2007.p.82).

Ao se ressignificar a identidade3 quilombola, através de seus ritos, tradições e cultura sem falarmos de gênero, territorialidade e raça e etnia, estaremos fazendo um debate incompleto sobre as comunidades quilombolas.

O termo raça é mais utilizado neste ensaio como um termo político-discursivo. Já o termo etnia está mais direcionado a cultura, “características culturais – língua, religião, costume, tradições, sentimento de “lugar” – que são partilhados por um povo” (HALL,Stuart, 2000, p.62).O que se percebe é que a identidade quilombola foi (re) construída a partir da luta pela terra e pelo reconhecimento das terras de quilombo, entretanto no Piauí essa identidade é ressignificada, através da cultura e tradições das comunidades quilombolas fazendo uma correlação entre Territorialidade, cultura, meio-ambiente e religiosidade.

As mulheres quilombolas são detentoras dos saberes tradicionais, das rezas, medicina natural, comidas típicas, bem como foram e são importantes na organização social da comunidade, e o importante, são as mulheres dos quilombos as responsáveis de passar para as gerações os saberes tradicionais. Assim, as mulheres quilombolas adotam as mais variadas táticas de resistência dos saberes tradicionais, com o intuito de não perder a herança sócio-cultural dos seus antepassados. Com isso, as mulheres quilombolas entram no contexto de importância na luta pelos seus direitos, como mulheres negras e como quilombolas. Principalmente no momento em que os quilombolas passam a ser sujeitos direitos, as mulheres negras sempre estiveram na frente da luta dos quilombolas.

No Piauí, não é diferente as gestões a frente da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas são de duas mulheres quilombolas, que, assim, como Acotirene são guerreiras, Maria Rosalina dos Santos do quilombo Tapuio e Osvaldina Rosalina dos Santos, as filhas de Vicente do Tapuio como são mais conhecidas. Ao lado de seu Tio José Andrelino dos Santos, iniciaram a luta pelo reconhecimento das comunidades quilombolas no estado do Piauí. Com o falecimento do Sr. José Andrelino, Maria Rosalina assume a liderança do movimento quilombola a nível estadual, nacional e internacional, além de suas múltiplas identidades, construídas paralelamente e não sendo complementares:
 Para Peter Berger e Tomás Luckman a identidade cultural é formada por processos sociais. Uma vez cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais (.......)

  Tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserido qualquer atividade ou experiência articular na comunidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez são estruturados por práticas sociais recorrentes. (GIDDENS, 1990, pp. 37-8, APUD, HALL, Stuart, 2000, pp.14-15)

A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas – cor da pele, textura do cabelo, características físicas corporais, etc. – como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro. (HALL, Stuart, 2000, pp.63)


“Enquanto a Maria da comunidade quilombola Tapuio, Maria do Povo – liderança sindical, Maria Rosalina a liderança do movimento quilombola no Piauí, são identidade que adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas” (SANTOS, Carlos Alexandre B. Plinio, P. 167)

Osvadina Rosalina dos Santos, irmã de Rosalina, assume a liderança da comuniadde e é uma especie de suporte para sua irmã. Mulher, negra, solteira, nascida na Comunidade Quilombola de Tapuio em 01 de dezembro de 1955, Bisneta de ex-escravos (Dioniso e Brígida), seus pais Rosalina Ana dos Santos e Vicente Francisco dos Santos tiveram 09 (nove) filhos, sendo que Osvaldina Rosalina dos Santos é a terceira dos nove filhos. Foi socializada dentro da comunidade quilombola Tapuio, no qual desenvolve atividades de roça, pastoreio, e da lida de casa. Começou sua militância através da igreja católica com a catequese das crianças, culto dominical (celebração da palavra). De 1994 a 1998 assumiu a coordenação paroquial das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e da juventude rural, sobre os olhares da comunidade que não admitia uma jovem mulher tomar as decisões.

Sempre motivando o trabalho organizacional na comunidade, através do grupo de mulheres, mutirão da roça: plantio e colheita, mutirões das festas (casamento, novena tradicional, etc.). Com tudo isso, se motivou a abrir-se para novos olhares, absorvendo as teorias e discussões sobre as temáticas do mundo, através de encontros de formação, capacitações, e principalmente a participação no encontro intereclésial (promovido pela igreja católica para discutir as problemáticas sociais que afetam as comunidades) na Bahia em 2000 foi marco decisório na sua vida de militante e de mulher. Liderança feminina da comunidade participou de capacitações do MEB (Movimento de Educação de Base), neste período surgiu à motivação para a construção de uma associação na comunidade, esta associação que já possui 23(Vinte e três) anos e que hoje recebe vários projetos desenvolvimento e de melhoria da qualidade de vida das famílias.

Conclusão
Consideramos essa união de identidade com o lugar como uma mediação entre as praticas culturais e as condições sociais, isto é, o habitus. A qualidade de quilombola é dada atualmente, através das noções de identidade e território, distinto daquele dado pelo Conselho Ultramarino. “A noção de quilombola designa na contemporaneidade um legado, uma herança cultural ou material que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar específico” (SCHMITT, TURATTI, CARVALHO, 2002, pp.04).

O decreto 4.887/2003 que regulamenta a titulação das terras de quilombos traz como conceito de quilombo o seguinte:
“ Considera-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para fins deste
decreto, os grupos étnico-raciais, segundo o critério da auto-atribuição,com
trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais especificas, com
presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão
histórica sofrida”. (art.2º do decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003

No Piauí, o reconhecimento das comunidades quilombolas partiu da valorização da cultura da resistência quilombola, principalmente, através das lideranças femininas, como por exemplo, as irmães Maria Rosalina dos Santos e Osvaldina Rosalina dos Santos, ambas do quilombo Tapuio. Dentro do quilombo Tapuio essas mulheres passaram a serem lideranças, sob forte pressão dos seus griots , que não aceitavam que duas mulheres pudessem liderar a comunidade, isto é, tomar decisões e obter espaço de poder dentro do quilombo Tapuio.Mesmo seu pai, Vicente Francisco dos Santos, apoiando suas filhas, passou a liderança da comunidade ao seu sobrinho Inácio Adriano dos Santos, no entanto, no seu leito de morte Sr. Vicente disse ao olhar sua filha Osvaldina, “ Essa é Vicente de saias”, reconhecendo ali, toda a liderança e o conhecimento que sua filha tinha adquirido, através da militância.

Entendemos a teoria do habitus como: “um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefa infinitamente diferenciada, graças às transferências analógicas de esquemas [...] (BOURDIEU, 1983, p.65)

Griots – mais velhos da comunidade de quilombo os contadores de histórias.

Atualmente, Osvaldina Rosalina dos Santos é Coordenadora Estadual das comunidades quilombolas no Piauí – CECOQ/PI e Maria Rosalina dos Santos faz parte da coordenação da CONAQ e vereadora do PT no município de Queimada Nova. Através da cultura quilombola é que as mulheres vêm se destacando dentro do movimento quilombola no Piauí, pois são detentoras e herdeiras dos saberes tradicionais das rezas, comidas, tradições, ladainhas, etc. Em lugares como as rezas tradicionais, a capoeira, a roça, a varrição dos terreiros, lavação de roupas, lugares que as mulheres permeia no seu dia-a-dia é que são realizadas as trocas de saberes e vivências, isto é, as trocas simbólicas.

Em suma, os espaços da luta quilombola tanto numa visão macro como os espaço dentro de cada quilombo numa visão micro, perpassam a resistência das mulheres quilombolas no Piauí. Elas são de suma e total importância no contexto da lutas pelas  políticas públicas e sociais para os quilombos contemporâneos. No qual, os quilombos passam ser sujeitos de direitos e as mulheres saem da invisibilidade para a visibilidade (
Carlos Alexandre), através da luta e militância. De Acotirene a Maria Rosalina e Osvaldina Rosalina, foram e são muitas histórias de vidas de mulheres quilombolas que assumem seus os quilombos na sua organização, liderança, no entanto, ainda se tem vislumbrado nas ações e lutas somente heróis negros.

O quilombo Tapuio hoje possui lideranças que estão (re) construindo suas histórias sem mediações. Maria Rosalina é vereadora do PT e possivelmente candidata a prefeitura do município, mesmo sendo chamada de “nega arrepiada” pelos seus opositores, ela entende que das múltiplas identidades que assumiu ocupar uma vaga no legislativo ou executivo é o maior de seus desafios como mulher e negra. Osvaldina, frente a Coordenação Estadual das comunidades quilombolas e presidente da Associação do quilombo Tapuio, tem como desafio maior, continua a ressignificar a cultura e religiosidade da comunidade, além é claro de ser uma base forte de segurança para sua irmã Rosalina. È como Osvaldina transferisse seus sonhos, anseios e desejos para sua irmã realizá-los. Até nisso, as negras do quilombo Tapuio assume o espaço do bem comum, mesmo nos sonhos e desejos.



Bibliografia
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